Sobre a Bienal do Rio, a censura e o beijo gay da Marvel

Interessante manifesto publicado pelo psicólogo Felipe Savietto ressalta a importância da complementaridade e da integração numa sociedade marcada por pré-conceito, fragmentação e ódio.

Eu cresci num mundo onde aparentemente existia uma única forma de amor. E ela era a certa. Na minha compreensão, apenas um homem e uma mulher podiam formar um casal. Mas eu, por razões que eu não sabia explicar, não me sentia encaixado nessa fôrma. Me empenhei muito para tentar explicar minha existência, como se ela precisasse de explicação. Para o meu ‘Eu” criança, esses sentimentos eram errados. Eu era todo errado. Vivi triste por muito tempo. Pensei em suicídio. Tinha um esquema organizado para fugir de casa aos 18 anos. E durante muito tempo, anos e anos da minha vida, eu tive nojo de mim, NOJO. Na adolescência, com o tempo, eu até consegui me sentir um pouco mais amado, vivi intensamente o cristianismo. Fui missionário, inclusive. Mas era uma aceitação que se estabeleceu repleta de condicionais: se eu mudasse, se eu mantivesse minha espontaneidade reprimida, Se eu me controlasse, Se eu não me entregasse aos meus sentimentos, Se eu não concretizasse esse pecado horroroso da homossexualidade. E assim eu segui a vida. E eu fiz tudo, absolutamente tudo o que pude para tentar me curar de uma doença inexistente. Fui a psiquiatras. Psicólogos. Padres exorcistas. Pastores. A cada semana eu desenvolvia uma ideia que se acabava frustrada na tentativa de me curar. Me trazendo somente mais tristeza e solidão.

Eu cresci num mundo sem gibis com beijo gay. Sem personagens LGBTS nas novelas. Eu cresci num mundo onde, nas poucas vezes em que esses personagens estiveram presentes, eles ocupavam lugares de sátira, ridicularizarão ou promiscuidade.

Nada no meu mundo de formação me influenciou a ser gay.  Sempre foi justamente o contrário. O certo foi exatamente aquilo que eu não era. E, ainda assim, sem incentivo algum da sociedade, eis-me aqui. Sendo eu, com todas as minhas preferencias. E, assim como eu, tantos outros.

Eu sou psicólogo e durante anos ouvi relatos de pessoas que amavam diferente do estabelecido. E eu aprendi a acolhê-las. Venci um pouco do meu preconceito.  Era perfeitamente “ok” para mim a vida delas. Eu aprendi a aceitar todo esse universo. E estava tudo bem que existissem gays, conseguia acolhe-los, conviver com eles, defender a causa deles. Inclusive militar por eles. Estava tudo bem, desde que não fosse eu essa pessoa. Desde que não fosse eu a levar um namorado e apresentar pra minha família, causando um mar de desgosto. Estava tudo bem desde que não fosse eu o gay da empresa que eu trabalho ou do meu círculo de amigos.

Claro, é virtuoso ser acolhedor. Tem ares de evolução. E, de fato, é um grande avanço descobrir que a gente consegue acolher semelhantes. Mas é extremamente solitário e amedrontador entender que você é como aqueles que está aprendendo a acolher. E é amedrontador que seja você a correr o risco de ser rotulado, rebaixado, colocado no lugar restrito e apertado, que qualquer pessoa que sofre preconceito é colocada. É amedrontador correr o risco de perder todos os privilégios que a “normalidade” te traz. Portanto, meu maior desafio foi vencer o meu preconceito para comigo mesmo. Vencer a minha arrogância de que eu conseguiria me tornar uma pessoa dentro do socialmente aceito. De que eu sim conseguiria achar uma forma de sair dessa bizarrice que havia dentro de mim.

Eu levei praticamente 2 décadas para entender que minha forma de amar pode existir. Que ela não é agressiva para ninguém. Eu levei anos para desassociar homossexualidade de promiscuidade ou até mesmo de pedofilia. Levei anos para encontrar forças de representatividade que sustentaram o oposto de todas as outras vozes que me diziam constantemente que eu era errado.

O mundo para mim (e todos nós), seria muito diferente, se tivéssemos diversas histórias sendo contadas. Se tivéssemos heróis gays, governantes lésbicas, empresários, padeiros, que representassem as mais diversas formas de amar. Se tivéssemos os mais diversos seres humanos, independente de religião,  raça, cor, gênero, preferencia sexual, nos mais diversos espaços da sociedade. Eu quero um mundo com multiplicidade de histórias. Eu quero crianças vendo as particularidades delas, que já existem, sendo representadas nos mais diversos espaços.

Portanto, não é possível se calar diante do que aconteceu na Bienal do livro no Rio de Janeiro.

Esse ato está longe de ser em defesa da família. 

Eu pergunto: Que família?

Pode, no mínimo, ser em ato em defesa de uma família de cristãos intolerantes. Que, é claro, não representa todos os cristãos.

Quem são vocês para terem a prerrogativa de determinar o que é família? Vocês estão em defesa apenas do grupo de vocês e daquilo que vocês consideram uma família. Vocês estão em defesa de um mundo onde só cabe vocês mesmos.

Porém, numa sociedade democrática, vocês não ocupam um espaço para legislar sobre o que significa a palavra família.

E, alias, tem gays na família de vocês, acreditem? Se não no mesmo teto, tem gays na reunião de natal da família estendida. Porque assim é a realidade. Assim é a vida.

E sabem porque vocês não estão vendo? Porque vocês não construíram um espaço onde é seguro falar. Não construíram um espaço onde é seguro ser a gente mesmo. E todos nós somos vítimas desse modo excludente de viver. inclusive o próprio intolerante, com suas contradições. Se você não viu homossexuais na sua família é porque … ou eles se afastaram ou eles estão sofrendo em silencio. Tentando se adequar. Às vezes, disfarçados por diagnósticos errados de depressão, distimia e ansiedade.

Tem também aquelas pessoas que estão bloqueando qualquer forma de sentimento. Impedindo toda espontaneidade, toda autenticidade.

A minha estrada foi uma trajetória de muito contato com o sofrimento. Em contrapartida eu vejo inúmeras trajetórias de pessoas bloqueando o sofrimento, sem saberem que uma vida sem sentir é tão danosa quanto sofrer demais.  São pessoas que seguem numa vida cinza, no piloto automático. Entrando em casamentos sem autenticidade, apenas por seguirem o protocolo de uma única forma de amar. Pessoas ocas por dentro, com medo do próprio sentimento. Com medo delas mesmas quando elas sentem algo. Escondidas numa vida sem gosto, robotizadas, chegando aos 60, 70 anos; morrendo sem experimentar uma vida e uma sexualidade autentica. Sempre com uma sensação de “quase”. Como uma sensação de que há uma porta, que se fosse aberta, as coisas seriam verdadeiras.  Mas essa porta vem com um enorme preço, que elas escolhem não pagar, graças a essa sociedade que vocês intolerantes ajudam a construir.

Acredite, eu encontrei muitas dessas pessoas.

Então, sim, cristãos intolerantes, nós da comunidade LGBT estamos entre vocês. Identificados, camuflados ou silenciados. Estamos no meio das pessoas que vocês amam. Nas mesas de almoço, nas igrejas. Em tudo. Nós não somos uma população a ser higienizada, convertida, eliminada.

Nós apenas existimos. 

E Não há nada que vocês possam fazer para impedir a nossa existência, a não ser acabar com toda a humanidade. Porque nós somos parte da humanidade e continuaremos vindo, quer tenham gibis com beijo gay, quer não.

Virão gays como virão pessoas que preferem a cor laranja ao invés da azul.

É irracional achar que seu filho será influenciado pela diversidade de histórias. Seu filho irá gostar do que ele tiver que gostar. É assim que o desejo opera dentro de nós.

Que tal ensinar o seu filho a ser autêntico? 

Dessa forma, se ele viver numa sociedade mais tolerante, que permita que ele faça experiências mais diversas, inclusive que ele beije alguém do mesmo sexo …apenas  por curiosidade, Ensine ele a ouvir a própria verdade. Ensine ele a não tomar atitudes apenas para agradar . Ensine-o que ele não precisa se adequar. Que o melhor que ele pode ser na vida é ele mesmo. Autentico.

Não estamos todos nós aprendendo isso?    

Portanto, eu e a grande maioria das pessoas da comunidade LGBT, nós não queremos transformar ninguém em gay. Queremos que as pessoas gostem do que elas gostam.

Se você verdadeiramente não gosta de uma coisa, não precisa ter medo de ter contato com aquilo, você seguirá não gostando. Mas também não tenha medo de gostar. Um processo de autenticidade só vai te levar para mais próximo de você. A vida é pra isso.

Agora, a atitude tomada na feira não foi sobre proteção. Foi Censura. Teve interesse políticos. Foi uma atitude cruzadista. Foi sobre imputar uma moral crista sobre a sociedade laica. Foi sobre alimentar um discurso maniqueísta e colonizador.

Que tal vocês anunciarem a mensagem de vocês para quem procura? Jesus sempre falou sobre a liberdade. Sobre as pessoas procurarem a ele através do exercício do livre arbítrio. Vocês não precisam fazer a mensagem de vocês descer goela abaixo. Aliás, nada mais contra os ensinamento de Jesus do que isso. Apenas sejam cristãos, exerçam os valores do evangelho e os interessados irão até vocês.

E aprendam a conviver numa sociedade democrática. Ou assumam que, na verdade, vocês querem uma sociedade  teocrática.

Nós convivemos com vocês. E eu quero que seja assim. Eu quero ver a marcha pra Jesus existir tanto quanto eu quero ver a parada gay acontecer.

Não quero ninguém legislando sobre o que é Deus. Quero que todas as visões sobre Ele existam e se expressem.

Imaginem um cenário onde algum representante público que segue o islã legisle ordenando retirar tudo das prateleiras que afirma a divindade de Jesus.  Imagine que ele dê declarações do tipo: “Vamos colocar os livros que tem Jesus na capa, embalados com sacos pretos, porque não queremos um homem ensanguentado influenciando nossas crianças e fazendo apologia ao sofrimento.”. Vocês cristãos intolerantes lutam contra isso em alguns países, mas seguem fazendo a mesma coisa. E o mais triste é que vocês já foram vítima desse gesto, muito bem relatado em atos dos apóstolos. Vocês não puderam existir, justamente por romperem com o socialmente aceito e foram massacrados por isso. Agora querem massacrar outras formas de existência. O que torna vocês diferentes dos próprios perseguidores de vocês no passado e no presente?

Mas vocês, cristão intolerantes, não se veem assim. Vocês mantem um discurso de acolhimento. Afirmando que as igrejas estão abertas para todos. Se acham amorosos. Dizendo “venham que vocês serão acolhidos”. Será que é amor se não existe horizontalidade? Será que é amor se somente uma única forma de amar é correta?  Será que há amor nos discursos de superioridade? Será que há amor quando queremos imputar formas de conduta e bloquear o exercício da autenticidade?

Esse suposto amor castrador, que acolhe carregado de condições para que o outro exista, não passa de arrogância e colonialismo.

Vocês se consideram donos da verdade. Carregam a verdade e são cruzadistas e nome dessa verdade. E são incapazes de colocar a empatia e a compaixão como prioridade, escolhendo o seguimento cego da palavra de Deus. Que só é questionada ou relativizada quando convém.

Transar com pessoas do mesmo sexo não é feio. Embora o belo seja uma construção social,  você é livre para achar feio. Porque ninguém legisla sobre o que você acha bonito. E não existe nenhuma imposição para que você ache bonito.

A questão é sobre nós podermos sentar na mesma mesa enquanto sociedade, sem que haja disparidade entre nós. Sem colocar beijo gay e beijo hétero em escalas diferentes.

Será que na sua visão nós podemos coexistir de forma equânime? Sem que um lado seja influenciando por Deus e o outro pelo demônio? Será que vocês conseguem vencer o maniqueísmo toxico pelo qual vocês estão impregnados?

A democracia só é possível, quando compreendemos que uma verdade particular precisa conviver com outras verdades. A base para existência dela exige enxergar que somos todos humanos, iguais, sem acesso a verdade absoluta.

Portanto, a sociedade aqui fora não é um reino que vocês estão tomando de volta. Não é um tabuleiro de War para vocês se dedicarem a conquistar. Nós não vamos jogar esse jogo. Nós queremos toda forma de existência. Queremos que existam igrejas, terreros, personagens gays e héteros, queremos a expressão do que é autentico. Vocês querem o mesmo? Ou querem um mundo pintado apenas com as cores que vocês estão escolhendo?

Que tal vocês se preocuparem com a salvação apenas das pessoas que procurarem vocês? Mas não. Vocês transformam em missão aquilo que é agressivo a quem não partilha das crenças de vocês. Almejam uma sociedade sem ideologia, desde que a ausência dela seja exatamente o que vocês pregam: Uma única forma de amar, de crer e de ser.

Que tal pararem de recolher livros de beijo gay das prateleiras da bienal? Recolham se os encontrarem nos retiros de vocês. Nas livrarias de Aparecida do Norte e do templo de Salomão. Que tal prestarem atenção sobre o quão bélicos vocês são e quanto vocês querem silenciar as histórias que não contam as verdades que vocês propagam? Silenciar ou, no mínimo, restringir essas histórias nas embalagens lacradas enquanto vocês dominam todo o espaço público. As escolas, as câmaras, as ruas, tudo. Apenas parem de ser colonizadores. Ou assumam de uma vez por todas que vocês não possuem maturidade emocional para viverem numa democracia.

la própria deve ser o espaço da multiplicidade de histórias. E eu espero que tenhamos força, coragem e sabedoria para fazermos tudo o que for possível para que as pessoas de hoje cresçam num mundo em que ninguém se sinta estranho, bizarro ou sujo por amar diferente, crer diferente, transar diferente e ser diferente. E a única forma de nenhum de nós sermos colonizadores é saindo por aí e ouvindo mais e mais histórias. Diversidade de histórias. Sentando nas calçadas, nas mesas, nas cozinhas, é nos encontrando olho no olho com as mais diversas pessoas, cultivando um coração generoso e interessado em como é ser aquela pessoa. Um coração sem medo do diferente. Um coração que só tem a crescer com a diferença, porque nada do que nos é autentico nos será retirado pelo contato com a diferença.

Uma resposta

  1. Que bom que li este artigo, me enxerguei nas tuas reflexões, me deu um alívio!!!
    Obrigada Felipe!!

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